Sobre partidas, cinema e o assombro literário

Piglia: as contradições da realidade são melhor traduzidas no cinema
Piglia: as contradições da realidade são melhor traduzidas no cinema

Sobre partidas, cinema e o assombro literário

Por Olga de Mello*

Embora não fosse conhecida como escritora, a atriz Carrie Fischer escreveu livros e roteiros e morreu, no finzinho de 2016, ao retornar da turnê de sua mais recente autobiografia, Memórias da Princesa (Best-Seller, R$ 34,90), em que contava o caso que teve com Harrison Ford, na filmagem de Guerra nas Estrelas. Carrie, que encarnou a icônica Princesa Leia, uma guerreira, líder de rebelião, era um ídolo pop com quase a mesma relevância que sua mãe, Debbie Reynolds, uma talentosa show woman, a mocinha do clássico Cantando na Chuva, que não resistiu à perda da filha, falecendo no dia seguinte e consternando o mundo inteiro.

 

Mal a gente enxuga as lágrimas e puxa de novo o lenço. O argentino Ricardo Piglia, que acaba de deixar o planeta nesta primeira semana de janeiro, via no cinema uma forma de narrativa importante para refletir a vida. Os cineastas da Argentina, acreditava ele, estavam conseguindo captar melhor as contradições da realidade imediata do que a literatura. Em 2006, esta foi uma das declarações que ele me deu em entrevista, para o jornal Valor Econômico, quando Piglia discorreu sobre a sinergia entre autobiografia, ensaio e história como um caminho para a literatura contemporânea.

Cinco anos antes, o cineasta Marcelo Piñeyro adaptara o cultuadíssimo Dinheiro Queimado (Companhia das Letras, R$ 42,90), de Piglia, para o cinema. O filme foi tão reverenciado quanto o romance, que teve como base o cerco da polícia argentina aos assaltantes de um banco em Buenos Aires, em 1965. No entanto, a ficção sempre superava a realidade na história. “Quase tudo ali foi inventado, apenas as características dos personagens e a trama eram reais”, me disse Piglia na entrevista, quando apontou Silvia Molloy e Alan Pauls como alguns dos mais relevantes autores argentinos contemporâneos, salpicando elogios para o brasileiro Silviano Santiago, o espanhol Enrique Villa-Matas e os americanos Phillip Roth e Don DeLillo.

Professor de literatura em Princeton, Ricardo Piglia, como quase todos os escritores argentinos da atualidade, tinha na a vida política e econômica do país um dos temas que percorriam suas histórias. Apaixonado por literatura clássica, gostava de reler Moby Dick (Cosac Naify, R$ 74,90), de Herman Melville, que lhe provocava “assombro” a cada leitura. Piglia acredita que a literatura conseguia se aproximar melhor do mundo real no gênero policial, que permite captar perfeitamente o funcionamento das engrenagens sociais, juntando as relações entre poder, política e crimes, entre esses a corrupção. Para reverenciar o universo de reflexões e recriações artísticas da dura vida real, nada melhor do que começar o ano e aproveitar as férias de verão lendo não só a obra de Ricardo Piglia, como também seus autores preferidos ao longo de janeiro, enquanto esta coluna entra em breve recesso. Até fevereiro!!!

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Mulheres fatais e a musicalidade literária

Todo mundo conhece – mais de ouvir falar do que pessoalmente – uma mulher fatal, aquela que enfeitiça os homens e acaba levando seus admiradores a finais trágicos. A cigana Carmem, imortalizada na novela de Prosper Mérimée, representa, essencialmente, essa mulher perigosa, que preza a liberdade antes de tudo e vive a inconstância das paixões, sem respeito ou consideração por quem a ama. Mas a história de Carmem e de Don José não pode ser compreendida pelo ponto de vista  contemporâneo, pronto a apontar misoginia na narrativa.

CarmenEOutrasHistoriasO parisiense Mérimée teve uma vida intensa, dedicando-se a diferentes atividades, entre elas a preservação de monumentos históricos e a arqueologia, além da literatura. O sucesso de Carmem deve-se, inegavelmente, à opera de Bizet, que soube aproveitar o enredo, mostrando o romance através dos olhos de Don José, como está no texto original. Carmem é bela, fascinante, exótica e suas atitudes anticonvencionais, pelos padrões burgueses, esclarece Mérimée, vêm de sua cultura. O relato de Don José é acrescido de um breve estudo sobre os costumes ciganos – que até hoje intrigam os outros grupos sociais – o que demonstra a tentativa de isenção de Mérimée, que, reduz assim as considerações moralistas no romance. O afastamento do autor como condutor da narrativa pode ser conferido em Carmem e outras histórias(Zahar, R$ 69,90), que reúne todas as novelas e contos de Mérrimée, traduzidos por Mário Quintana.

unidos_para_sempre_9788525411501_mO ambiente por excelência das mulheres fatais, no século XX, foi a literatura policial. A morte de Ruth Rendell, no início de maio, me levou a reler os poucos volumes de sua obra que tenho em casa – não chegam a uma dúzia. Embora as devoradoras de homens não sejam tão presentes assim em suas histórias, que sempre retrataram a sociedade a partir dos anos 1960, quando a liberação sexual alcança, enfim, as mulheres ocidentais, Ruth Rendell tinha cuidado em mostrar as sedutoras. Em Unidos para sempre (LP&M, R$ 18,90), lançado em 1975, a mulher fatal surge numa personagem secundária, interessada em conquistar o Inspetor Wexford, que busca o assassino de uma dona de casa sem o menor encanto. Em Simisola (Rocco, R$  15, em sebos), ele se vê fascinado por uma jovem ligada a um crime racial. Wexford resiste às tentações, pois Ruth Rendell quis criar um homem feliz no casamento, que não passasse a vida pulando de caso em caso, acumulando frustrações amorosas.

Quando se elogia um escritor, é comum dizer que sua literatura que suas palavras soam como melodia. Hoje é dia de fazer o contrário. Com a partida do guitarrista B.B. King, o mundo só não se empobrece culturalmente porque ele pôde deixar gravado o que ofereceu a nossos ouvidos. Ao chamar suas guitarras de “Lucille” – todas; cada uma era a Lucille da vez -, B.B. King mostrou que sabia fazer poesia musical. Seu toque nas cordas era firme, gentil, alegre como o carinho sensual, amoroso.  Entre os divertidos vídeos aos quais emprestou sua figura carismática está um dirigido por John Landis, para o lançamento do filme Into the night, estrelado por Michelle Pfeiffer e Jeff Goldblum, que participaram lado de outros “músicos” – Dan Ackroyd, Eddie Murphy e Steve Martin. Landis, além de amar esse elenco, foi o responsável pela revolução nos videoclipes com Thriller, que dirigiu para Michael Jackson. Landis reuniu novamente Ackroyd e B.B. King emBlues Brothers 2000, cercado por uma constelação de estrelas do jazz, rock, blues e pop.  E como temos a felicidade de viver na era da informação multimídia, aqui vão os dois clipes, pequenas demonstrações da arte do Rei do Blues, um literato da música.

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O difícil adeus aos gênios

Orson Welles não foi o maior gênio do cinema, porque antes dele houve Chaplin e depois Hitchcock. Os três se tornaram referências na história da arte, em geral. A apropriação desses criadores como personagens é corriqueira, em filmes. Neste maio,  Welles completaria 100 anos de nascido. Celebrado como inovador pela ousadia estética em fotografia, edição, montagem e narrativa apresentados em Cidadão Kane, que dirigiu com apenas 25 anos, ele já havia aterrorizado os Estados Unidos, com sua dramatização, por cadeia de rádio, do clássico A Guerra dos Mundos, de H.G.Wells. A transmissão foi interrompida depois que milhares de pessoas em pânico, correram às ruas, temendo a invasão de alienígenas em Nova Jersey.

O último filme de Welles foi Verdades e Mentiras, em que ele discute autoria artística, mostrando trabalhos de falsificadores de pinturas. Do título original, F for Fake (F, de falsificação), Antonio Xerxenesky tirou o nome de seu romance, F(Rocco, R$ 27,50), um thriller que tem como protagonista uma assassina de aluguel brasileira, contratada para assassinar Orson Welles. Mais do que uma história de suspense, F é uma iguaria reflexiva para os admiradores de Welles. Pródigo em informações sobre a filmografia  do  cineasta,  o romance faz uma reflexão sobre os filmes “de autor”, a paixão sobre cinema e o  carisma de um homem que foi maior do que sua própria obra.

b0fc89fb-6b0b-49d2-89a6-95c5f4158f86Tanto F quanto A última dança de Chaplin (Intrínseca, R$ 39,90), do italiano Fabio Stassi, abusam de imagens literárias que remetem aos enquadramentos dos protagonistas de suas histórias. Nesta biografia romanceada de Chaplin, ele faz um trato com a Morte, na noite de Natal de 1971: se conseguir contar-lhe uma história que a faça rir, terá mais um ano de vida, tempo necessário para acompanhar o crescimento de seu filho mais moço. Todos os anos, então, eles se encontram e Chaplin consegue adiar  sua partida. E, temendo fracassar, ele escreve uma longa carta para o filho, contando seu tráfico passado: a infância pobre na Inglaterra com o irmão Sidney enfrentando o alcoolismo do pai e a doença mental da mãe, iniciando a vida de ator fazendovaudeville, até a carreira bem-sucedida nos Estados Unidos. O tom poético, quase chapliniano, permeia todo o texto.

carne_tremula_9788525418067_mNesta mesma semana, os apaixonados por literatura policial perderam uma de suas rainhas, a baronesa Ruth Rendell. Seguindo a tradição britânica, da qual o maior expoente é Agatha Christie, ela situou suas tramas numa Inglaterra conturbada, angustiada com a explosão de conflitos sociais. Seu principal personagem, o inspetor Wexford, acompanha uma sociedade em mutação, tentando entender os novos parâmetros de comportamento. Rendell costumava dizer que Wexford, sempre tentando manter a serenidade, mesmo atônito diante do mundo contemporâneo, era seu alter ego. Os temas densos que abordava quase sempre provocavam os crimes do cotidiano, aqueles que estão no noticiário do jornal, e lhe garantiram reconhecimento no meio literário. O thriller psicológico de Ruth Rendell é tão impressionante Ganhou quatro prêmios Edgar e quatro Dagger. Seus mais de 60 romances foram traduzidos em diversos idiomas. Entre as diversas adaptações cinematográficas de seus livros, a mais conhecida é Carne Trêmula (LP&M, R$ 19,90), roteirizada e dirigida por Pedro Almodóvar.

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A história de cada um e as histórias de todos nós

Por muito tempo ouvi falar do Neil Gaiman, principalmente como o criador da série de quadrinhos Sandman. Fui uma ardorosa leitora de quadrinhos, antes que eles alcançassem o prestígio atual, e, talvez esse fato tenha criado minha resistência a alguns autores, como Gaiman. A indiferença caiu quando abri o intrigante Os filhos de Anansi(Intrínseca, R$ 39,90), que narra as descobertas do pacato Charlie que não sabia ter um irmão nem que o pai, que morre no palco de um bar de karaokê, era um deus da mitologia de Gana.

O texto recheado de referências à cultura pop contemporânea de Gaiman conforta o leitor – e Charlie – na viagem até o universo das lendas fantásticas. Spider, que herdou do pai o poder de se assumir a forma de uma aranha, é carismático como um astro de rock. O livro é nitidamente dirigido a um público jovem, em que o narrador onisciente assume um tom de professor de Ensino Médio – que “passa a matéria”, de maneira leve, divertida, mas nem por isso superficial. Ao contrário.

92ccb974-fbe5-40b5-9491-5989f6257138Densidade semelhante é encontrada no segundo volume da sérieEra uma vez na França – o voo negro dos corvos (Galera Record, R$ 55), a graphic novel de Fabien Nury e Sylvain Vallée, inspirada na vida de Joseph Joanovivi, um sucateiro judeu que fez fortuna vendendo armas para nazistas e para a Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial. O personagem é fascinante por sua absoluta falta de ideais admiráveis. Cuida da família, mas não hesita em renegar suas origens, escapando da deportação para campos de concentração, graças a seus bons contatos. Em 1949 acabou preso como colaboracionista. Morreu em 1965, três anos depois de cumprir pena. Publicada em seis volumes, lançados a cada ano a partir de 2007, a série ganhou prêmios da crítica especializada.

34e5ee42-b8cb-4133-b673-60c48be234fcCreer & destruir Os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista (Zahar, R$ 79,90) fala sobre a mesma época, buscando compreender os motivos que levaram cerca de 80 homens de alta cultura se engajarem na disseminação da ideologia do Terceiro Reich. A participação desse grupo, composto por graduados em Economia, Direito, Filosofia, História e Linguística, em importantes funções da elite nazista é dissecada pelo francês Christian Inagrao. Além de garantirem o embasamento teórico para a política de extermínio de Hitler, eles coordenaram o planejamento de operações que levaram à eliminação de judeus, ciganos, doentes mentais e todos os que eram enquadrados na abrangente noção de “raça inferior”. O mais incômodo na leitura do contundente estudo é a aparente falta de valores morais de pessoas tão sofisticadas, que aderiram a uma causa ainda hoje tão perturbadora para a sociedade alemã.

Capa Mentiras de Verão AG.cdrFruto dessa geração que carrega a culpa pelo pior conflito do século XX, o alemão Bernhard Schlink não se refere à Segunda Guerra nos personagens dos contos reunidos em Mentiras de verão (Record, R$ 35). Ambientados em diferentes locais da Alemanha e dos Estados Unidos, os contos têm como tema comum as ilusões a que nos agarramos, em busca de um sentido para a vida, evitando a solidão através de paixões e dos mais diferentes laços familiares. O mesmo apego demonstrado pela protagonista de Sexo (Record, R$ 25), primeiro romance da antropóloga Mirian Goldenberg, uma estudiosa da sexualidade do brasileiro. O curto texto, quase um monólogo teatral, mostra à perfeição a angústia da mulher que tece fantasias sobre a continuidade de um relacionamento iniciado – ou não – depois de uma noite de sexo casual.

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Juventude atormentada

Numa semana que não engrenou, como a que passou, em que dois feriados disputavam espaço entre dias de trabalho, pude aproveitar aqueles momentos engessados entre a labuta para fechar algumas leituras iniciadas fazia tempo. Uma boa surpresa me aguardava, ao me deparar com um sopro novo na literatura adolescente, segmento que cresce há uns bons quinze anos, desde Harry Potter. Ao lado dos enredos fantásticos sobre seres sobrenaturais, surgem diversos títulos que têm no bullying e na violência social o pano de fundo para muitas histórias sobre jovens sofrendo mais do que por amores não correspondidos. É o caso de Yaqui Delgado quer quebrar a sua cara (Intrínseca, R$ 29,90)

O título já avisa o leitor sobre o que o espera, reproduzindo o ambiente violento das escolas secundárias nas grandes cidades. Transferida para um colégio próximo de sua nova casa, no Queens, em Nova York, a charmosa Piddy, de 15 anos, torna-se o alvo preferencial da agressiva Yaqui Delgado, uma jovem que já teve algumas passagens por reformatórios. Enciumada com a atenção que Piddy desperta nos rapazes, entre eles seu namorado, Yaqui passa a ameaçar Piddy, que vive o dilema de denunciá-la à diretoria do colégio ou jamais atravessar o caminho da valentona.

Embora direcionado ao público jovem, o romance, que recebeu excelentes críticas dos especialistas do segmento literário, não faz concessões a desfechos felizes, tão comuns em narrativas deste gênero. A pobreza e a violência acompanham os personagens, que enfrentam a vida com coragem, sem sucumbir à autopiedade, uma referência que acompanha todo o enredo, já que Piddy é o apelido de Piedad, filha de uma mãe solteira cubana, que jamais conheceu o pai.  A escritora Meg Medina demonstra conhecer perfeitamente o cenário que descreve. Filha de imigrantes cubanos, ela cresceu no Queen, e, atualmente, trabalha em projetos comunitários de apoio a jovens latinos e à literatura.

ba124bab-87e4-4a46-896a-d48a8a66ccd4Dentro do segmento juvenil, crescem as histórias sobre os rejeitados que se vingam das figuras mais populares nas escolas.Dente por dente (Novo Conceito, R$ 34), de Jenny Han e Siobhan Vivian, é a continuação de Olho por olho (Novo Conceito, R$ 34), em que três garotas decidem se vingar dos colegas que as desprezam ou que as magoaram em algum momento. O que torna intrigante a leitura é que nenhuma das meninas aparenta ter traços das psicopatas que agem unicamente movidas pela vingança, não importando se os alvos de seu ódio possam sofrer danos irreparáveis ou até morrer.

36e31ed4-532a-49f6-a375-2cbad5bf0e8aSaindo da ficção, mas demonstrando a triste realidade da juventude em boa parte do mundo, uma boa leitura no momento em que o Brasil discute a redução da maioridade penal é Nó do Diabo (Record, R$ 55) da jornalista Mara Levitt. Uma minuciosa reconstituição do processo demonstra o quanto o pré-julgamento sobre os hábitos pouco convencionais de três rapazes numa cidadezinha do Arkansas levou-os à condenação pelo assassinato de três meninos de 8 anos, em 1994. Damon Echols, então com 18 anos, Jessie Misskelley, de 17 e Jason Baldwin, de 16, foram acusados de matar as crianças em rituais satânicos. Depois de 18 anos na cadeia (Echols aguardava execução no corredor da morte, enquanto os outros dois cumpriam prisão perpétua), eles foram liberados por ausências de provas devido ao clamor público em favor deles, que tiveram apoio de artistas de cinema, depois do lançamento de um documentário sobre o caso.

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Essa gente que vai se embora…

Eduardo Galeano e Günter Grass partiram do planeta no mesmo dia, deixando terráqueos com um vazio no peito, inconformados com o silêncio. Ambos eram escritores da moda nos anos 70/80. Galeano por causa do contundente As veias abertas da América Latina (LP&M, R$ 22,90), em que discutia 500 anos de opressão no continente, Grass por O Tambor (Nova Fronteira, R$ 68), o romance picaresco que, para muitos, melhor explicou o sentimento alemão no pós-guerra. Não li nenhum desses livros, preferi o que era menos árduo na obra dos dois mestres.

futebol-ao-sol-e-a-sombraA morte de Galeano foi bem mais pranteada por aqui, a despeito de Grass ter ganhado um Nobel de Literatura, em 1999. Galeano era queridíssimo das esquerdas latino-americanas e falava das nossas dores, com aquele calor bem local. Dele li, naturalmente, a poética antologia Mulheres  (LP&M, R$ 22), com textos que ele próprio selecionou de diversos livros, tratando poeticamente de figuras femininas reais ou ficcionais. Estão lá as  brasileiras Xica da Silva, cuja peruca de cachos brancos cobria uma cicatriz “feita a ferro, quando ela era escrava”, a  portuguesa de nascimento, mas totalmente trabalhada no south american way, Carmem Miranda, “o principal produto de exportação do Brasil”, e a entidade Maria Padilha, que “escolhe, para manifestar-se neste mundo, as mulheres que nos subúrbios do Rio ganham a vida entregando-se a troco de tostões”. Eva Peron, Frida Kahlo, as mulheres incas, as que pegaram em armas nas revoluções no mundo inteiro, as que não se conformaram em cumprir papeis sociais pré-definidos, as bruxas de Salém, assufragettes norte-americanas, as que eram levadas para conventos pelas famílias. Em contraponto, ou somando-se ao olhar apaixonado feminista, Galeano era absolutamente encantado pelo esporte favorito do homem. Futebol ao sol e à sombra (LP&M, R$ 22) é quase um hinário de devoção ao ‘belo jogo’. O fervor pela Celeste, a seleção uruguaia, é combinado à admiração pelo futebol brasileiro, sobre o qual era capaz de discorrer com a mesma seriedade que dedicava à política.

De Grass, confesso sem o menor pudor, li só  A caixa – Histórias de uma câmara escura (Record, R$ 42), romance nitidamente calcado em sua vida e na de seus oito filhos (seis biológicos, dois adotados), no qual conta os encontros da família, que muda de tamanho a cada novo casamento do pai. O livro é dedicado a Maria Rama, representada na história por Marie, amiga da família, que fotografa os encontros numa velha câmera Agfa. A solidão das crianças diante do pai célebre, que abandona o grupo por novos amores, demonstra a genialidade de Grass num texto exuberante e direto, que se destaca de outras histórias mais elaboradas.

Günter Grass cresceu na Alemanha nazista e até 2006 escondeu seu passado como membro da Juventude Hitlerista, na adolescência. A culpa por ter pertencido a uma sociedade que encarava o nazismo com um determinismo biológico está entranhada em sua obra, mas a descoberta de sua participação nas SS, ainda que sem qualquer acusação de crime cometido, maculou sua imagem de responsável pela consciência moral da nação. O trabalho literário impecável continuou merecendo reconhecimento mundial, embora nada tivesse o mesmo sucesso que O tambor, a história do menino Oskar, que se recusa a crescer num mundo dividido entre a ideologia do passado e a condenação do presente.

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Vidas brilhantes

Nem todas as vidas renderiam um romance, sequer um filme. A de Betty Halbreich, uma celebridade em Nova York, onde comanda o departamento de compras personalizadas da loja Bergdorf Goodman, escolhendo roupas para primeiras-damas norte-americanas, artistas e até personagens de filmes ou de séries, como Sex and the City, é uma dessas vidas aparentemente sem qualquer traço relevante. A trajetória profissional de Betty daria, no máximo, uma boa reportagem sobre mulheres que abraçaram carreiras profissionais inusitadas nos anos 1950. No entanto, por ser uma figura pública, talvez, ela conta o que passou antes e depois de começar a trabalhar em Um brinde a isso (Intrínseca, R$ 39,90).

 

Bem mais curiosas do que as experiências pessoais são as observações de Betty sobre o quanto mudou o mundo ao longo de seus 86 anos de vida. A preocupação da clientela quanto ao nome do criador de uma roupa, os vestidos cada vez mais brilhantes e mais curtos, sapatos mais altos, com solas pintadas de vermelho horrorizam a personal shopper . Ainda em atividade, ela lamenta os tamanhos diminutos dos modelos e a moda que hoje massacra com a autoestima das mulheres, que, na maturidade são “punidas por não passar todos os minutos da vida na academia, fazer dietas detox ou arriscar a vida com lipoaspiração, (…) que praticamente vivem de roupa de ginástica. Na minha época, viajava-se de avião com terninho, luvas e chapéu. (…) Na última vez em que fui a um aeroporto, pensei que tinha entrado (…) numa academia”, resmunga Betty. Gente agarrada aos celulares, conversando ao telefone como se estivessem em casa, chefes que se reúnem com subalternos com os pés sobre a mesa – tudo indigna uma senhora oriunda de um tempo sofisticado.

 

Capa Minha Vida AG.inddBiografia que faz muito mais sentido para nós, brasileiros, é a do cineasta Domingos de Oliveira, que no delicioso Vida Minha(Record, R$ 55) fala sobre  mulheres, a família, televisão, teatro e cinema, com saudades que rejeitam a melancolia da maturidade. Descrições apaixonadas de suas musas, entre elas a segunda ex-mulher, Leila Diniz, entrecortadas por recordações de casos profissionais, do encontro com amigos, de passagens joviais fazem o retrato do entusiasmo que Domingos sente pela vida. Ardente, mas sem sentimentalismo, derramando-se apenas em corujices pela filha e pelos netos, o percurso artístico do criador de histórias é também uma celebração do modo de vida de um Rio de Janeiro em constante mutação.

 

c1311_0Se Betty e Domingos são seres urbanos, impregnados pela agitação cultural e social das metrópoles, a naturalista Joan Root só via sentido numa existência junto à natureza. A biografia Na África Selvagem (Zahar, R$ 9,90*), do jornalista americano Mark Seal, é tão fascinante quanto a vida de Joan, filha de ingleses radicados no Quênia. Mais do que o relato sobre a moça tímida que se tornou naturalista, Seal fala da chegada dos colonizadores britânicos ao continente africano. A devastação que os brancos levam ao país foi combatida por Joan antes mesmo de seu casamento com o exuberante cinegrafista Alan Root, um dos mais reconhecidos especialistas em captar imagens da vida selvagem.  Por mais de trinta anos, eles trabalharam juntos  em produções para a BBC até depois da separação. A parceria só se desfez por pressão da nova mulher de Alan Root, o que levou Joan a usar sua notoriedade para lutar pelas espécies animais ameaçadas no Quênia, onde o cultivo de flores para exportação e a caça levou a desintegração social do país e ao enriquecimento de muitos proprietários de terras. Em 2006, ela foi assassinada, como tantos outros naturalistas que se dedicaram à defesa ambiental.

 

*A editora Zahar está fazendo uma queima de estoques maravilhosa através de seu site, vendendo diversos livros – quase todos espetaculares – a preço de custo. Vale a pena entrar no site da Zahar e encomendar.

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Só para menores

Descanso de leitor é na rede com livro nas mãos. Este abril tem tanto feriado estendido que prefiro sugerir algumas leituras a expor minhas impressões sobre minhas leituras. Então, seguem indicações para os momentos em que os leitores mais jovens se cansarem de videogames durante a alta temporada de feriadões.

Dentista sinistra_gDentista Sinistra (Intrínseca, R$ 34,90), de David Walliams, não pretende ajudar crianças a suplantarem o medo de sentar na cadeira de dentista. Os mais impressionáveis podem até adquirir novos traumas, incorporando os terrores do paupérrimo Alfie, aluno de escola pública inglesa, que evita os dentistas desde muito pequenino, quando o pai perdeu o emprego de mineiro, por problemas pulmonares. Uma fábula sobre a miséria no Primeiro Mundo, destinada a leitores de 8 a 12 anos.

Orie_0Orie (Pequena Zahar, R$ 44,90), de Lúcia Hiratsuka, ilustradora reconhecida e ganhadora de diversos prêmios, entre eles o Jabuti, é a história das lembranças avó da autora, quando criança no Japão. Delicados desenhos contam a rotina de menina pequena, que acompanhava os pais nas travessias de barco entre a aldeia e a cidade.

e159ba76-a9ae-4cd7-b5be-7a7b07caa60dA mais pura verdade (Novo Conceito, R$ 29,90), de Dan Gemeinhart, traz como protagonista de um tema em voga – as viagens para reflexão sobre a vida – um pré-adolescente com doença terminal, que foge de casa, acompanhado apenas pelo cachorro, para escalar uma montanha. O livro de estreia do autor, professor e bibliotecário norte-americano, é tocante e traz imagens cinematográficas da travessia do garoto.

untitledPor favor, Sr. Panda (Paz & Terra, R$ 35), do escritor e ilustrador Steve Antony, é para crianças bem pequeninas aprenderem a força de palavras “mágicas”, como “obrigado” e “por favor”. O Panda oferece rosquinhas a diversos animais que encontra por seu caminho, mas nem todos se mostram merecedores dos biscoitinhos. Simples, direto e muito bonitinho.

grandequaseumarockstarjpgQuase uma rockstar (Intrínseca, R$ 34,90), de Matthew Quick, pertence à vasta classificação de obra para “jovens adultos”. Quick ficou famoso com O outro lado da vida (Intrínseca, R$ 29,90), que virou filme e não tem nenhum apelo infanto-juvenil, mas tem intimidade com esse universo – foi professor. A adolescente Amber, sua mãe e o cachorro dormem dentro de um ônibus escolar, desde que deixaram a casa do padrasto. A garota de 17 anos enfrenta a dura realidade com otimismo, fazendo amigos entre os rejeitados pelos demais colegas e adultos que a apoiam em momentos difíceis.

ba7f6acc-5d69-4bfe-a122-aa9b47781619Garoto encontra garoto (Galera, R$ 29,90), de David Levithan, tem título autoexplicativo. Levithan é especialista em literatura gay para jovens. Seria o equivalente ao livro mulherzinha tendo rapazes como os casais românticos. O enredo tem a profundidade de um diário de adolescente. Divertido e fútil, arrebatado e apaixonado, não deixa de ser curioso e de abrir um novo nicho no mercado editorial. Indicado aos leitores LGBTS jovens.

GorilaGorila e O Túnel (Pequena Zahar, R$ 39,90, cada um), do ilustrador Anthony Browne, tratam da aproximação entre membros da família, dentro do universo fantástico do autor inglês, ganhador em 2000 com o Hans Christian Andersen, o mais celebrado prêmio da literatura infanto-juvenil mundial. O primeiro livro traz uma menina que ganha do pai um gorila de brinquedo. O boneco ganha vida – mas só até o pai encontrar tempo para se dedicar à filha. O segundo livro é sobre dois irmãos sem afinidades, que descobrem o quanto são importantes um para o outro quando atravessam um túnel.

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Desconstruções literais e literárias

Desconstruir é verbo da moda desde que o primeiro homem imortalizou seus feitos como caçador nas paredes de uma caverna.  Em literatura, então, tudo é desconstrução – principalmente no campo da teoria. Na prática, as tramas policiais sempre usaram a desconstrução como elemento fundamental das narrativas. Simplesmente não existe mistério que não se esconda sob a fachada da normalidade. Ou escândalo camuflado por camadas de hipocrisia.

78713c08-fee0-4d4c-b062-f720f5fdee48Aestrelaok (1)A investigação e o processo judicial contra a americana Amanda Knox, acusada de matar outra jovem, quando ambas estudavam na Itália, foi a inspiração para A Estrela (Rocco, R$ 44,50 ), segundo a própria autora, a celebrada Jennifer duBois. Na trama, ambientada em Buenos Aires, as duas jovens dividem um quarto numa casa que recebe estudantes de intercâmbio. O comportamento pouco convencional de Lily, que gosta de explorar a cidade e se envolve romanticamente com um vizinho esquisitão, é o motivo para torna-la a principal suspeita do assassinato da bela, estudiosa e pacata Katy. Os pais de Katy, o promotor do caso, o vizinho e a acusada relembram a história, cada qual por seu ângulo. Segundo romance de Jennifer duBois, o livro chamou a atenção da crítica por sua forma inusitada, que vai além do simples thriller.

Capa Colmeia DS V4.inddMenos elaborado, mas também puxando cortinas que escondem a realidade, Boa noite, estranho (Novo Conceito, R$ 39,90), de Jennifer Weiner. A divertida novela policial é contada na primeira pessoa por uma dona de casa de Connecticut, que trocou uma desilusão amorosa e o glamour urbano de Nova York por um casamento sem grandes emoções. Deslocada entre as mães do subúrbio, todas perfeitas donas de casa que administram lares e famílias felizes, ela resolve desvendar o assassinato de uma vizinha, descobrindo que as aparências enganam. O enredo e a ambientação lembram Colmeia – Só há lugar para uma rainha (Record, R$ 45), da britânica Gill Hornby, que também esmiúça as relações das mulheres de classe média que largam a profissão para se dedicar à criação dos filhos. Falta apenas o sarcasmo afiado e a crítica social de Hornby para tornar o texto de Jennifer Weiner mais do que uma leitura agradável.

b736c403-71ec-4da3-8433-5f4654bbd9f4Em campo mais concreto, um novo nicho bem sucedido no mercado editorial são os livros de passatempos para adultos que consigam se apropriar desses volumes, colando figurinhas, rasgando páginas, cortando imagens dessas versões contemporâneas de almanaques de atividades juvenis. Os primeiros a chegarem por aqui tinham a assinatura de designers “de guerrilha”, como Keri Smith, autora de Destrua este diário(Intrínseca, R$ 24,90). Semelhante a ele é The Pointless Book: um livro sem noção (Verus, R$ 25), que já anuncia na capa: “Iniciado por Alfie Deyes, terminado por você”. Menos radicais são os títulos que prometem relaxamento a quem se dispuser a pintar flores, mandalas e diferentes estampas. O grande sucesso do momento é Jardim Secreto: Livro de colorir e caça ao tesouro antiestresse (Sextante, R$ 29,90), da ilustradora Johana Basford. Há meses nas listas de mais vendidos, eles oferecem um entretenimento barato e, certamente, sem os efeitos colaterais dos antidepressivos.

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Alguns herois

Monteiro-LobatoEu já gostava de ler quando conheci Monteiro Lobato, um escritor que as patrulhas ideológicas transformaram em feitor de escravos, embora eu continue o encarando como um filho de seu tempo. Mais que um autor, ele era um dos grandes disseminadores de literatura, com traduções/versões de clássicos de Jack London, Mark Twain, Burroughs e Conan Doyle, entre outros. E foi ele que, com Os doze trabalhos de Hércules, me apresentou à mitologia grega e às lendas de outros povos que também buscavam explicar as nuances da alma da Humanidade.

CAPA_PJEOsDeusesGregos_gMais de sete décadas depois de Lobato, o escritor Rick Riordan leva ao  público jovem as divindades que cercam sua criação, o adolescente Percy Jackson, filho do deus dos mares Posseidon/Netuno, cuja série de aventuras já vendeu mais de 15 milhões de livros no mundo todo. É Percy quem “assina” a introdução de Percy Jackson e os deuses gregos (Intrínseca, R$ 59,90). Riordan, ex-professor de inglês e de história para jovens secundaristas, abusa da irreverência para descrever façanhas de deuses com tantos defeitos quanto seus fieis humanos. Os casamentos consanguíneos, informa, se davam pela dificuldade de se encontrar uma alma gêmea através de seu “perfil no Paquere.titã.com”. A fúria de Hera/Juno contra as amantes de seu infidelíssimo marido Zeus/Júpiter é resumida no capítulo “Hera fica meio doida”. Já os amores da deusa da beleza, Vênus, estão em “Não tem como não amar Afrodite”.

livro_hF7ohsMais tradicional na abordagem, mas ainda com muito humor, Kenneth C. Davis fala sobre mitos greco-romanos, egípcios, hebreus, persas, hindus, nórdicos, africanos, celtas, maias, incas, astecas, norte-americanos, chineses, japoneses e dos povos das ilhas do Pacífico em Tudo o que precisamos saber, mas nunca aprendemos sobre mitologia (Difel, R$ 68). A atualidade do tema, lembra Davis, é alimentada por Hollywood, nos filmes comoTroia, em que houve mais preocupação com “o traseiro de Brad Pitt do que com o calcanhar de Aquiles”, o herói que o ator interpretava, ou pela literatura do século XX, quando Tolkien reviveu os arquétipos básicos das narrativas épicas para povoar a Terra Média. Figuras menos sanguinárias, na atualidade, do que nos tempos em que viviam apenas na tradição oral também podem ser explicadas pela maturidade de cada povo, acredita Davis: “Se os celtas eram uma espécie de república estudantil bagunceira, os vikings eram uma gangue de motoqueiros sem lei. Por fim, acabaram sossegando e se tornaram os respeitáveis e civilizados escandinavos que conhecemos hoje”.

ReiArthur_bolsoEntre os mitos mencionados por Kenneth C. Davis está o de Artur, um possível rei ou guerreiro importante para os habitantes da Bretanha, na Antiguidade. De lenda celta ou galesa até o Artur cristão, com seus cavaleiros que se empenham em encontrar o Santo Graal, o cálice usado por Cristo na Última Ceia, chegando ao menino magricela que a Disney imortalizou em A espada era a lei, houve diversas versões. A que conhecemos na atualidade deriva de A morte de Arthur, escrita por Sir Thomas Malory, em algum de seus períodos encarcerado, no século XV, por problemas criminais e/ou políticos. Provavelmente para matar o tempo, Malory passou a compilar todos os contos conhecidos sobre o ciclo da cavalaria. Já em 1853, o americano Howard Pyle lançou Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda(Zahar, R$ 29,90). Pyle era um ilustrador renomado e também assinou as belíssimas ilustrações que integram a linda edição de bolso da coleção Clássicos Zahar. Gosto tanto das histórias de Artur, que elas me levaram a não apenas colecionar muitas versões da lenda, mas a produzir um Artur próprio – meu filho mais velho, que guarda, claro, a beleza e a integridade de um cavaleiro medieval.

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